A constituição brasileira define que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde da população, ou seja, da saúde pública. Isso inclui as ações de prevenção e as ações de tratamento. O papel do Estado é, portanto, central na promoção da saúde pública, tanto nas questões sociais e políticas, fazendo aplicar os serviços médicos na organização do sistema de saúde, quanto por meio de ações de vigilância, que inclui a fiscalização e a inspeção sanitária.
O processo de inspecionar e fiscalizar um estabelecimento de produtos de origem animal deve ser executado exclusivamente por agentes públicos (Fiscais Agropecuários), investidos por concurso. Essa categórica afirmação se dá pelo fato de que não existe a possibilidade de isolarmos os processos de inspeções ante e post-mortem do abate, obrigatórios do ponto de vista legal, da execução da ação fiscal. Lida-se com saúde pública e atualmente, com os conceitos de saúde única (One Health), deste modo, o que acontece dentro da empresa, implica diretamente a qualidade dos alimentos e a saúde dos consumidores.
Questões como as higiênicas, as estruturais, as de qualidade microbiológica e de composição físico-química dos produtos, aspectos como a conservação, vida de prateleira, rotulagem e de bem-estar-animal, itens como a potabilidade de água, saúde de colaboradores, entre outras, não são obrigações que podem ser administradas por um agente privado, que não possui “poder de polícia sanitária”. O fiscal não tem somente a função de interromper um abate ou uma produção inadequada, mas o dever legal de agir, como ente público na defesa da população e dos consumidores.
Assim, torna-se difícil, pelo óbvio conflito de interesse, que um “fiscal privado” tenha a segurança para agir, muitas vezes, contra os interesses da empresa que, no final das contas, é responsável pelo pagamento dos seus vencimentos, através de entidades jurídicas como associações, cooperativas ou sindicatos.
Criar mecanismos legais para diferenciar conceitualmente a inspeção da fiscalização é equivocado e irresponsável, pois não existem atos de inspeção sanitária ante morten e post morten, sem a respectiva e correspondente ação fiscal. A sociedade confia nos entes públicos para a garantia do direito de se alimentar com segurança. Fraudes no leite, queijo, pescados, entre outras, somente são evitadas com fiscalização séria, responsável, realizada por servidores públicos, fiscalização esta que reverte em benefício direto para a população, pelo simples fato da diminuição da casuística de doenças.
Segundo lição de Hely Lopes Meirelles (em Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 25ª ed., 2000, pág. 133):
“A polícia sanitária dispõe de um elastério muito amplo e necessário à adoção de normas e medidas específicas, requeridas por situações de perigo presente ou futuro que lesem ou ameacem lesar a saúde e a segurança dos indivíduos e da comunidade. Por essa razão o Poder Público dispõe de largo discricionarismo na escolha e na imposição das limitações de higiene e segurança, em defesa da população”.
Enfatizando a questão da importância do ente público nesta atividade, cita-se a Política Nacional de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, que deixa claro que “a alimentação e a nutrição constituem requisitos básicos para a promoção e a proteção da saúde, possibilitando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano, com qualidade de vida e cidadania. O redirecionamento e o fortalecimento das ações de vigilância sanitária serão focos de atenção especial na busca da garantia da segurança e da qualidade dos produtos e da prestação de serviços na área de alimentos. Essas ações constituem, assim, instrumento básico na preservação de atributos relacionados com o valor nutricional e com os critérios de qualidade sanitária dos alimentos e na prestação de serviços neste âmbito, com vistas à proteção da saúde do consumidor dentro da perspectiva do direito humano à alimentação e nutrição adequadas”
No Brasil, apesar da conhecida sub-notificação dos casos de intoxicação alimentar, entre os anos de 2000 e 2011 foram notificados 8.663 surtos de doenças veiculadas por alimentos com 163.425 pessoas doentes e 112 óbitos (SVS/MS, 2011). Os gastos do SUS em surtos e casos isolados de doenças transmitidas por alimentos ou pelo simples fato de uma pessoa se ausentar ao trabalho por estar com distúrbios gastrintestinais já justificaria o investimento na prevenção.
Sabe-se que o Brasil como grande exportador de produtos e insumos agropecuários, envia para o mundo todo o melhor da sua produção, o que é motivo de orgulho. No entanto, está na hora de exigir que o que fica para consumo interno também tenha as mesmas condições e qualidade para consumo, o que torna necessário o fortalecimento e não o desmonte dos serviços públicos de inspeção dos estados e municípios. Na realidade precisam é estar bem equipados, qualificados e com a adequada atribuição de inspeção e fiscalização, o que só é possível com fiscalização estatal e não privada.
A vigilância sanitária de alimentos e a inspeção de produtos de origem animal atuam diretamente no bem estar da população, devendo ser vistas e tratadas como atividades típicas do Estado, não podendo, de forma alguma, ser desenvolvida por entes privados, sem poder de polícia sanitária e sem a imparcialidade necessária para as ações fiscais cotidianas.
Os três níveis de inspeção determinados pela Lei 7889/89 não podem significar diferenças no trato da coisa pública, ainda mais quando isso se reflete em saúde da população. Não se resolvem problemas financeiros de governo, entregando às empresas a segurança dos alimentos fornecidos a toda uma população, ao contrário, outros problemas serão gerados e é isto que deve ser evitado.
*Diretoria da Afagro-RS