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06/12/2016 – ZH: Perigo no prato

ZERO HORA | PÁGINAS 10 À 16

  • Sua saúde sob risco 

Câncer, má-formação fetal e desregulação hormonal estão entre os males que podem ser provocados pelo consumo a longo prazo de produtos com resíduos de agrotóxicos em excesso ou proibidos. O Grupo de Investigação da RBS (GDI) identificou contaminação em quase metade de amostras coletadas pela reportagem na Ceasa, na Capital. No segundo dia da série Perigo no prato, veja os riscos que a ingestão de alimentos com a presença de agroquímicos fora do padrão podem trazer para a sua vida.

Alimentos contaminados com agrotóxicos podem causar prejuízos a longo prazo na sua saúde e da sua família. Parte deles sai das Centrais de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa), companhia que distribui quase metade dos hortifrutigranjeiros consumidos no Estado. O teste laboratorial encomendado pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) com os cinco tipos de frutas e verduras mais comprometidas, segundo análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2012, mostrou que 45% das amostras compradas pela reportagem na Ceasa estavam contaminadas por substâncias proibidas, não autorizadas para aquele vegetal ou acima do limite tolerado pela lei. Entre elas, o Acefato e o Metamidofós, dois dos maiores vilões da alimentação dos brasileiros.

Pelos seus efeitos nocivos, incluindo o risco de mutação do material genético e distúrbios no sistema nervoso, as duas substâncias estão proibidas na Europa, destaca a biomédica Karen Friedrich, doutora em Ciência com ênfase em toxicologia e professora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Havia Acefato em quatro das nove amostras da Ceasa que estavam contaminadas: alface, pepino, pimentão e cenoura. O Metamidofós, proibido no Brasil desde junho de 2012, foi detectado em três: alface, pepino e pimentão.

A reportagem teve acesso a notas técnicas produzidas pela Anvisa no processo de análise dos perigos dessas duas substâncias. Os documentos se baseiam em estudos internacionais a partir de testes de laboratório com cobaias animais e indicam, para ambos, riscos comprovados para a saúde humana.

ACEFATO É POSSÍVEL CAUSADOR DE TUMORES

A nota técnica da Anvisa destaca que o Acefato foi classificado como “possível carcinógeno humano” pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. As evidências da doença foram detectadas em estudos com ratos, camundongos e cães. Depois de ingerir doses do agente químico ao longo de semanas, os animais apresentaram surgimento de tumores (malignos e benignos), com maior incidência entre as fêmeas de camundongos.

Nos estudos, o Acefato também demonstrou capacidade de diminuir a habilidade de movimentos e levar a distúrbios de aprendizagem (cognitivos). O resultado das análises com animais indica que as crianças são mais vulneráveis aos efeitos do que os adultos.

“A exposição durante o desenvolvimento neurocomportamental pode levar a alterações permanentes”, diz a conclusão da nota técnica, reforçando o risco acentuado para os mais jovens. O material ainda aponta a possibilidade de redução da fertilidade, o que foi verificado nos camundongos machos, com diminuição do desempenho sexual e número de ninhadas.

Os estudos existentes, como os citados pela Anvisa, são indicativos dos riscos reais, mas não há precisão absoluta para definir o papel do agrotóxico no surgimento de um possível câncer. Certo é que, ao comer alimentos com excesso de agrotóxico ao longo da vida, você fica exposto ao desenvolvimento de doenças crônicas.

– O elevado consumo de resíduos de agrotóxicos é uma preocupação. Ao ingerir, a pessoa aumenta a sua probabilidade de ter uma doença crônica, mas a ciência ainda não dá conta de mensurar os danos – explica Luiz Cláudio Meirelles, ex-gerente de toxicologia da Anvisa entre 1999 e 2012.

Na avaliação de Meirelles, foi um erro apenas restringir, e não proibir totalmente no país, o uso do Acefato, “parente” do Metamidofós, banido desde 2012:

– É incompatível retirar um e manter o outro no mercado.

O ex-dirigente da Anvisa destaca que, depois da aplicação do Acefato nas lavouras, parcela dos seus resíduos se transforma em Metamidofós (vetado no Brasil). Na prática, isso leva a situação contraditória: o veneno está proibido, mas segue aparecendo em análises laboratoriais de alimentos, seja porque foi aplicado de forma irregular ou pelo processo de transformação química do Acefato.

METAMIDOFÓS PODE PREJUDICAR SISTEMA NERVOSO E GESTAÇÕES

O dossiê da Anvisa sobre o Metamidofós traz evidências de que ele é causador de distúrbios nos sistemas de reprodução e nervoso, além de atacar a imunidade. Estudos com ratos e coelhos indicaram que o produto causa problemas de gestação e pós-natal. Pode ainda provocar alterações no material genético. Muitas das descobertas estão ligadas ao período pós-nascimento: os filhotes de camundongos submetidos a testes sofreram redução de peso, dificuldades auditivas, perda de reflexos e da habilidade para nadar. Até a abertura dos olhos foi prejudicada.

Em cães e ratos, a ingestão de Metamidofós desencadeou alterações no ovário, útero e testículos. Nos estudos sobre imunidade, o produto mostrou risco redobrado. Ele reduz as defesas do corpo e, por isso, facilita o aparecimento de doenças, inclusive tumores, embora não seja considerado cancerígeno.

“O Metamidofós inibe a formação de anticorpos. (…) Indivíduos expostos ao Metamidofós poderiam ser mais suscetíveis a infecções e ao desenvolvimento de cânceres”, atesta o relatório.

A baixa imunidade em humanos está relacionada à ocorrência de leucemia e câncer de estômago e de pele. A nota técnica da Anvisa ainda citou série de epidemias que ocorreram ao redor do mundo após pessoas consumirem alimentos, muitos deles vegetais, com resíduos de Metamidofós.

Em janeiro de 2008, uma intoxicação afetou pelo menos 10 pessoas no Japão. Trinta minutos após a refeição, elas apresentaram vômito e diarreia. A vítima mais jovem, de cinco anos, foi a mais prejudicada: sofreu perda de consciência e parada respiratória. Em Hong Kong, em novembro de 1988, houve 179 casos de intoxicação por consumo de couve-da-malásia. Os sintomas foram semelhantes ao caso japonês e análise posterior confirmou a intoxicação pelo Metamidofós.

A nota técnica da Anvisa foi emitida no processo de reavaliação toxicológica do inseticida, quando o princípio ativo foi banido do Brasil, segundo o documento, devido aos seus “efeitos nocivos à saúde”.

  • Mistura aumenta o perigo 

A contaminação revelada pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI) por meio de análises de laboratório em hortifrútis da Ceasa preocupa a bióloga da Secretaria Estadual de Saúde Suzana Andreatta.

De acordo com a profissional, cada agrotóxico é estudado individualmente, e não há pesquisas sobre o consumo associado de mais de um agrotóxico no mesmo alimento – situação verificada no teste encomendado pela reportagem com vegetais comprados na Ceasa.

Sabe-se que há risco, mas a extensão ainda é desconhecida.

– Já pegamos 22 agrotóxicos diferentes em um pimentão – exemplifica Suzana, que coordena as coletas do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) na Região Sul, realizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Nas frutas e verduras compradas pelo GDI na Ceasa, um morango apresentou presença simultânea de seis tipos agentes químicos, quatro deles não autorizados ou acima dos limites. Um pimentão dos três contaminados tinha cinco agrotóxicos diferentes, sendo quatro irregulares.

NO LONGO PRAZO, AMEAÇA DE INCIDÊNCIA DE CÂNCER

– Não temos a menor ideia de como a associação dessas substâncias pode afetar o indivíduo, mas sabemos que vai levar a problemas de saúde. Pode aumentar a probabilidade e a velocidade de você ter câncer. Isso é trágico – diz a doutora em Farmácia e coordenadora do Laboratório de Toxicologia (Latox) da Faculdade de Farmácia da UFRGS, Solange Cristina Garcia.

Segundo a pesquisadora, a contaminação por agentes químicos também tem reflexos nos produtos industrializados em razão da presença de frutas e verduras da composição, como o morango no iogurte.

– O problema é muito maior. Não tem como nos defendermos sem políticas públicas. Se isso não acontecer, teremos daqui a 15, 20 anos, incidência de câncer muito maior – alerta Solange.

Entidades internacionais reforçam a previsão. Segundo a nutricionista Thainá Alves Malhão, da Unidade Técnica de Alimentação, Nutrição e Câncer do Instituto Nacional de Câncer (Inca), evidências científicas apontam que a exposição aos agrotóxicos leva ao aumento de vários tipos de câncer, como os de fígado e próstata.

POSSÍVEIS DANOS POR SUBSTÂNCIA
Os dez tipos de agrotóxicos proibidos no Brasil ou sem permissão para a cultura, encontrados em frutas e verduras comprados na Ceasa, apresentam diversos efeitos nocivos para a saúde. Além do Acefato e o Metamidofós – duas das substâncias mais estudadas pela comunidade científica, cujos efeitos na saúde foram abordados nas páginas anteriores – outras oito substâncias foram detectadas nas amostras: Tiofanato Metílico, Carbendazim, Fenpiroximato, Dimetoato, Triflumurom, Metomil, Imidacloprido e Quinoxifeno.
Para entender os efeitos que estes agrotóxicos causam para a saúde, a reportagem solicitou à Anvisa os estudos que basearam a liberação destas 10 substâncias no país.
A agência, porém, só dispunha de pesquisas disponíveis sobre Acefato e o Metamidofós. As análises sobre os demais agroquímicos, registrados e avaliados no Brasil antes da criação da agência, são antigos e não estão acessíveis para consulta. Há ainda o caso do Quinoxifeno, encontrado na cenoura, que sequer possui registro no Brasil. Para esses agentes químicos que não tiveram informações repassadas pela Anvisa, o GDI consultou especialistas que listaram os efeitos conhecidos na saúde humana. Confira abaixo:
Tiofanato Metílico
Presente no morango e no pimentão
Causa irritação respiratória e na pele e também problemas reprodutivos. Estudos em animais mostram que induz alterações hormonais e no material genético. Integra o grupo dos fungicidas, relacionado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) a sintomas como alergias respiratórias, dermatites e cânceres.
Carbendazim
Presente no morango e no pimentão
Há estudos que evidenciam possível interferência na fertilidade. A longo prazo, apresenta risco potencial de câncer. Em 2013, o Ministério Público Federal do Distrito Federal enviou à Justiça pedido para suspender o registro de agrotóxicos formulados com Carbendazim no Brasil. A ação ainda não foi apreciada. A substância pode causar problemas reprodutivos e no desenvolvimento do feto. Um dossiê da Abrasco diz que o Carbendazim afetou a reprodução de ratos de laboratório. A entidade também associa os fungicidas, categoria que abrange esse químico, a sintomas como alergias respiratórias, dermatites e cânceres.
Em 2011, carga de suco de laranja produzido no Brasil foi barrada nos Estados Unidos devido à presença do Carbendazim. O agrotóxico é proibido naquele país.
Quinoxifeno
Presente na cenoura
Não há estudos publicados que avaliem os impactos para a saúde humana.
Fenpiroximato
Presente no morango
A substância mostrou, em estudos com animais, relação com redução do apetite e úlcera gástrica. Induz alteração do material genético. Também é tóxica para as abelhas.
Dimetoato
Presente no morango
É um inseticida cujos efeitos tóxicos incluem transtornos mentais. A partir de experimentação laboratorial, foi observado retardo de crescimento e má-formação em camundongos. Neste animal, também induziu tumores de fígado e relacionados a alterações sanguíneas
Triflumurom
PRESENTE NO PIMENTÃO.
Em estudos em animais, demonstrou danos aos glóbulos vermelhos no sangue. Quando ingerido, pode causar náuseas e vômitos. É também um inseticida, grupo associado pela Abrasco com alergias, asma, hipersensibilidade, arritmias cardíacas e problemas neurológicos.
Metomil
Presente no pimentão
Entre os efeitos crônicos estão problemas renais, destruição e alterações de proteínas do DNA, o que pode levar à má-formação de fetos, cânceres e baixa imunidade. Também provoca alterações em proteínas do sangue, o que pode gerar desnutrição e anemia. Causa desequilíbrio hormonal. Dossiê da Abrasco aponta que os inseticidas, categoria do Metomil, podem causar alergias, asma, hipersensibilidade, arritmias cardíacas e problemas neurológicos.
Imidacloprido
Presente no morango
Estudos apontam que a substância é tóxica para as células intestinais, diminui a atividade dos linfócitos do sangue, responsáveis por combater bactérias e vírus. Altera a absorção de proteínas pelo sangue. Pode provocar doenças no fígado e nos rins. Também está associada a depressão, ansiedade, Parkinson, demência e danos reprodutivos. Em ratos de laboratório, apresentou risco no desenvolvimento de embriões e para os órgãos reprodutivos. É considerado bastante tóxico para as abelhas.
No pepino e no alface foram detectados Acefato e Metamidofós, cujos efeitos estão descritos nas páginas anteriores dessa reportagem. Os dois venenos também apareceram no pimentão, cujas amostras acumularam seis pesticidas.
COMO REDUZIR A AMEAÇA
Não sai totalmente, mas lave bem
• Estudos científicos comprovam que não há como eliminar totalmente o agrotóxico. Mesmo uma boa higienização retira entre 20% e 30% dos venenos, pois se restringe à remoção do que está na casca. Boa parte penetra o alimento.
• Para eliminar uma parte dos agroquímicos que estão na casca do produto, reserve uma esponja macia para lavagem de frutas. Use um pingo de detergente e enxágue bem.
• Além de lavar com água corrente, outra alternativa é higienizar o alimento com bicarbonato de sódio, diluindo uma colher de sopa para cada cinco litros de água e deixando 30 minutos de molho. “Não há estudo científico que comprove, mas é algo muito feito e, neste caso, é melhor fazer do que não fazer”, recomenda Karen Friedrich, biomédica e doutora em Ciência com ênfase em toxicologia e professora da Fundação Oswaldo Cruz.
Não tire a casca
• Não é recomendado remover a casca das frutas na tentativa de diminuir os agrotóxicos. Neste caso, ainda é melhor para o organismo ingerir as fibras presentes na casca do alimento. O consumo de fibras previne diversas doenças. Ao descascar os hortifrútis, além de não eliminar os agrotóxicos por completo, o consumidor perde um fator de prevenção importante.
Prefira produto rastreado e orgânicos
• Comprar produtos rastreados é alternativa de segurança. Eles devem conter na embalagem informações do nome do produtor, CNPJ, CPF (se o produtor for pessoa física), data de colheita, data de embalagem, número do lote, além de endereço e telefone de contato. Não se trata de um selo padrão, mas todas estas informações devem estar visíveis. Se não estiver embalado, a gôndola deve ter a identificação do produtor, com endereço e telefone, e a data da colheita.
• No caso dos orgânicos, a exigência é de que tenha selo padrão de certificação de conformidade orgânica. No caso das feiras, o vendedor deve ter esta certificação em mãos, como se fosse um alvará, que comprova que o seu produto é, de fato, orgânico.
Fontes: Superintendência do Ministério da Agricultura, Karen Friedrich, doutora em Ciência com ênfase em toxicologia e professora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Signorá Peres Konrand, professora do curso de Nutrição da Unisinos, e Wanderlei Pignati, médico e pesquisador dos impactos de agrotóxicos na saúde e no ambiente pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

 

  • Extensão do risco não é unanimidade 

A quantidade de agentes químicos nos alimentos, a frequência de consumo de produtos contaminados e o peso de quem os ingere são fatores determinantes para o eventual desenvolvimento de doenças. O alerta é da professora do curso de Ciências Farmacêuticas da Universidade de Brasília (UnB) Eloisa Dutra Caldas.

– Tem que avaliar a dieta toda de cada indivíduo, quanto come, se come diariamente, para só então inserirmos riscos – diz Eloisa.

Indicado para se manifestar em nome da Associação Nacional de Defesa Vegetal, o professor aposentado da Unicamp Flávio Zambrone entende que resíduos de agrotóxicos proibidos ou não autorizados em frutas e verduras “são caso de polícia”. Presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia, entidade privada, Zambrone diz que a situação requer sistema de rastreamento para “identificar e responsabilizar” o agricultor infrator.

Sobre a identificação de vegetais da Ceasa com agrotóxicos acima do limite máximo de resíduos (LMR), o professor diz se tratar de questão de saúde pública, mas ameniza ao dizer que dificilmente alguém ultrapassa a dose de ingestão diária aceitável (IDA). Quando autoriza o uso de uma substância, a Anvisa define a IDA a partir de testes em animais. Depois, divide o número entre todas as culturas que puderem usar o agrotóxico, distribuindo frações para cada uma.

– O que você não pode é ultrapassar a IDA. Teria de comer todo dia, em grande quantidade, para ultrapassar. Existe margem adequada de segurança para pressupor que você poderá ingerir aquela quantidade a vida inteira sem danos à saúde – afirma Zambrone.

VARIEDADE DE FONTES ELEVA PARCELA DE INGESTÃO

O problema é que frutas e verduras costumam ter resquícios de vários químicos, por vezes além do limite – só em um pimentão da Ceasa, havia cinco. E a conta piora porque, ao comer alimentos variados, você vai somando o consumo de resíduos dos mesmos agrotóxicos. Nos vegetais da Ceasa, o GDI achou Acefato no alface, na cenoura, no pimentão e no pepino, proibido para todas essas culturas.

– Ainda que abaixo do limite, o agrotóxico é problemático porque a pessoa pode ser sensível, ter baixa na imunidade. A legislação estabelece um teto, mas não deveria ter nada – adverte Wanderlei Pignati, pesquisador dos impactos de agrotóxicos na saúde na Universidade Federal do Mato Grosso.

Em seu mais recente levantamento sobre agrotóxicos no país, divulgado no mês passado, a Anvisa avaliou o risco agudo (imediato) de comer alimentos contaminados. A agência mediu a chance de intoxicação nas 24 horas posteriores à ingestão de 25 tipos de alimentos em todos os Estados, apontando a laranja e o abacaxi como os mais perigosos. Esse critério identifica produtos com altíssimo grau de intoxicação, capazes de resultar problemas de saúde em um dia após o consumo. O perigo mais comum, porém, é no acúmulo de pequenas doses diárias de agrotóxicos na alimentação. Sobre isso, a ciência ainda não tem métricas para fazer previsões com exatidão.

  • Legislação é omissa e fiscalização falha 

A legislação brasileira, embora reúna uma série de normas a serem respeitadas, ainda atua mais no papel de vilã do que de mocinha para o enredo que termina com resíduos de agrotóxicos nos alimentos que você e sua família comem diariamente. Outra protagonista é a falta de fiscalização.

O regramento básico no Brasil nasceu em 1989 e, depois, houve detalhamento em decreto de 2002. Existe previsão de prisão para quem vender ou aplicar agrotóxicos em desconformidade com a lei. A venda dos agroquímicos somente poderia ocorrer com a apresentação da receita agronômica. Nas relações com o consumidor, é considerado crime vender alimentos contaminados. Apesar desse conjunto de regras, a fiscalização é precária:

– O que falta é fiscalização efetiva. Isso gera sensação de descontrole absoluto no uso e no comércio de agrotóxicos. Os órgãos administrativos, como a Anvisa, agem demoradamente – avalia o promotor de Justiça Daniel Martini, integrante do fórum gáucho de combate aos impactos dos agrotóxicos.

A falta de controle é ampliada pela série de omissões na legislação, que permite, por exemplo, registro de agrotóxicos por tempo indeterminado. Só há reavaliação se surgirem estudos apontando risco ao homem ou ao ambiente. Atualmente, existem agroquímicos liberados no Brasil que foram registrados há décadas, quando pouco se sabia sobre os efeitos na saúde. E os custos da revisão técnica dos agrotóxicos recaem sobre o poder público, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos ou na União Europeia.

NORMAS IGNORAM EFEITOS DO CONSUMO SIMULTÂNEO

Há ainda incentivos fiscais às indústrias de agrotóxicos como redução de ICMS, isenção de IPI e Cofins, com cobrança de impostos menores do que no setor dos medicamentos.

– Isso é um absurdo. Alegam que o alimento vai ficar mais barato, mas, às vezes, a economia não é repassada ao consumidor – afirma o bioquímico e sanitarista José Agenor Alvares da Silva, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) entre 2007 e 2013, e ex-ministro da Saúde por breves períodos nos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

A liberação de defensivos agrícolas depende de análises de impacto toxicológico em cobaias. Os testes, sob responsabilidade dos fabricantes, são feitos com uma substância de cada vez, em animais como ratos, coelhos ou cachorros. É avaliada a dose máxima para evitar danos aos rins, fígado, alterações imunológicas e no sistema nervoso. O problema é que os alimentos que consumimos trazem combinação de diferentes agentes químicos. E os impactos disso não são estudados.

– As pessoas comem mais de um alimento e, em geral, eles contêm mais de um componente químico. Essa mistura não é estudada nos animais de laboratório. Quando a empresa informa a dose segura de ingestão, é só para um tipo de veneno – adverte a biomédica Karen Friedrich, doutora em Ciências com ênfase em Toxicologia, professora do programa de pós-graduação do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Engenheiro de alimentos Victor Pelaez, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), complementa:

– É uma falha grave, e não só no Brasil. Atualmente, é tema de discussão nos EUA por causa do efeito sinérgico (simultâneo) no organismo. Os resultados dessa mistura ninguém sabe.

O SISTEMA BRASILEIRO
Confira as principais diretrizes da legislação
PONTOS POSITIVOS
DEFINIÇÃO COMO CRIME
• Os artigos 15 e 16 da Lei 7.802 preveem penas de dois a quatro anos de prisão em caso de uso inadequado de agrotóxico. O técnico agronômico também pode ser responsabilizado.
• Somente será liberado no país o agrotóxico que contar com antídoto. Além disso, testes em animais avaliam a possibilidade de os pesticidas fazerem mal aos seres humanos.
AUTONOMIA PARA RIGOR NOS ESTADOS
• A norma permite que Estados e municípios tenham leis mais restritivas. Exemplo é a lei gaúcha, que proíbe a concessão de registro para uso no Rio Grande do Sul aos agrotóxicos que estão com aplicação vetada nos países de origem. É por isso que princípios ativos como o Carbendazim estão proibidos no Estado e liberados no restante do país.
PONTOS NEGATIVOS
FALTA TRANSPARÊNCIA
• O sistema é pouco transparente e os critérios para autorização de agrotóxicos seguem o mesmo caminho. A lista da Agência Nacional de Vigilância Sanitária dos pedidos de registro de novos agroquímicos no Brasil traz apenas números de protocolo.
ASSOCIAÇÃO NÃO É ESTUDADA
• Outra fragilidade – presente nas leis do mundo inteiro – é o não cruzamento dos efeitos no ser humano. Por exemplo: para liberar o agrotóxico A, são feitos testes em separado dessa substância. Mas, na hora de aplicação na lavoura, o agente químico A é misturado com agentes químicos B, C e por aí vai. O resultado dessas combinações é desconhecido.
SIGILO COMERCIAL
• Na maioria dos países, e aqui no Brasil não é diferente, a lei permite que as indústrias, sob alegação de segredo comercial, mantenham por anos em sigilo os resultados das pesquisas que investigam os efeitos de um agrotóxico na saúde e
no ambiente.
EMPRESAS FORNECEM OS LAUDOS
• Com fiscalização precária, os órgãos de controle brasileiros recebem das indústrias os laudos sobre impacto dos agrotóxicos. O Estado acaba se contentando com as informações que estão no papel. Não são feitas análises posteriores para atestar a conformidade do produto e a veracidade dos dados entregues pela parte interessada.
TEMPO DE VALIDADE
BRASIL
• O tempo de validade é uma das falhas na legislação. Uma vez aprovado no Ministério da Agricultura, na Anvisa e no Ibama, o agrotóxico recebe registro eterno. Só passará por reavaliação caso surja estudo científico que demonstre que o agroquímico representa risco real para a saúde da sociedade.
• É a Anvisa que tem de pagar pesquisas sobre os riscos de um princípio ativo em reavaliação.
•O processo é lento. Em 2008, a Anvisa abriu rechecagem dos agrotóxicos derivados de Abamectina, Carbofurano, Glifosato, Tiram e Paraquate. Oito anos depois, não há conclusão.
ESTADOS UNIDOS
• Os agrotóxicos registrados precisam ser reavaliados a cada 10 anos. O ônus de provar que aquele produto não passou a ser intolerável aos padrões atualizados da sociedade é das empresas, que precisam arcar com os custos dos testes. A cada novo processo, o registro de determinado agrotóxico pode acabar sendo cassado.
• As taxas cobradas são mais caras do que no Brasil. Atualmente, estão em US$ 630 mil (R$ 2.079 milhões). Por aqui, equivalem a US$ 20 mil (R$ 66 mil).
UNIÃO EUROPEIA
• A cada 15 anos, as empresas precisam pedir novamente o registro dos produtos agrotóxicos. Entram em período de reavaliação e, ao final, podem ter o registro de utilização cassado. O ônus da prova, assim como nos Estados Unidos, é das fabricantes. As multinacionais do setor precisam provar cientificamente que os seus produtos não passaram a ser intoleráveis e de alto risco para os padrões atualizados da sociedade.

 

  • Falta de estrutura emperra processos sobre reavaliação 

As fragilidades e deficiências no controle de agrotóxicos no país também são frutos de escassez estrutural. Enquanto nos Estados Unidos 850 servidores atuam em organismos reguladores, no Brasil, o número não passa de 50. Aí se incluem o Ministério da Agricultura (Mapa) – responsável por medir a eficiência do agrotóxico na lavoura –, a Anvisa – que avalia os efeitos toxicológicos na saúde da população – e o Ibama – que estuda o impacto de agrotóxicos no ambiente.

Enquanto isso, as importações de agrotóxicos cresceram 700% entre 2000 e 2013. Há 1,5 mil agrotóxicos aguardando registro na Anvisa e desde 2008 a agência não consegue reavaliar seis componentes, já proibidos em seus países de origem. Até isso ocorrer, eles seguem sendo utilizados.

O engenheiro de alimentos Victor Pelaez, doutor em Economia e professor da Universidade Federal do Paraná, lembra que, em alguns casos, o fabricante contesta judicialmente a reanálise do produto, atrasando ainda mais a retirada do mercado.

– Os recursos geram efeito protelatório. Isso é gravíssimo. O Paraquate, por exemplo, herbicida extremamente tóxico, está proibido nos EUA, na União Europeia e até na China, e a gente continua produzindo – reclama.

MUDANÇAS NA LEI AMEAÇAM MECANISMOS DE CONTROLE

Outras iniciativas padecem. O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) divulgou, depois de quatro anos parado, dados do período de 2013 a 2015. Em 2012, foi lançado o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), política interministerial que pouco avançou. No ano seguinte, foi anunciado o Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que teve sua inauguração adiada três vezes e até hoje não saiu do papel.

Além de falhas na lei, a situação pode se agravar, segundo especialistas, com a aprovação de projeto que retira do Ibama e da Anvisa o poder de veto sobre o uso de agrotóxicos, centralizando a responsabilidade no Mapa.

– Esse projeto é um desastre. Será uma tragédia se for aprovado – critica Luiz Cláudio Meirelles, ex-gerente-geral de toxicologia da Anvisa, que atuou no órgão por 13 anos e hoje é ligado à Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

  • Tac é cumprido, diz diretor da Ceasa

Em entrevista à Rádio Gaúcha, o diretor técnico-operacional da Ceasa, Ailton Machado, defendeu a atuação da companhia e garantiu que está sendo cumprido o termo de ajustamento de conduta (TAC) assinado com o Ministério Público.

O diretor classificou como “absurda” a associação do consumo de resíduos de agroquímicos com a ocorrência de câncer em seres humanos – embora normas técnicas da Anvisa e o Instituto Nacional do Câncer alertem para a questão. De acordo com Machado, a Ceasa “não compactua” com permissionários que comercializam verduras e frutas com resquícios de químicos banidos do Brasil, caso do Metamidofós, detectado na alface, no pepino e no pimentão.

Zero Hora cotejou trechos da entrevista com normas técnicas emitidas pela Anvisa e com exigências estabelecidas no TAC.

CONFIRA.
FALTA DE REGISTRO PARA PEQUENAS CULTURAS
O que disse Ailton Machado
“O problema é a falta de registro (agrotóxicos permitidos) para pequenas culturas. (…) Aquele produto (agrotóxico) não registrado para o pimentão e que foi encontrado e que foi divulgado daquela forma digamos assim, alarmista, para a população, ele está, por exemplo, registrado para a maçã. Aí o povo não come pimentão porque aquele produto ali não está registrado, e não é assim que chega a informação para o povo, a informação chega de maneira a causar alarmismo, e aquele produto está registrado para a maçã. Quem é que come maçã? Crianças e adultos. Pimentão é consumido em quantidade muito menor do que a maçã e, em geral, não é consumido por crianças.”
O que ZH apurou
Existem 45 agrotóxicos autorizados e registrados para aplicação na alface, 46 para a cenoura, 48 para o morango, 59 para o pimentão e 89 para o pepino. Ainda assim, há produtores que aplicam agrotóxicos não autorizados para as culturas e outros banidos do Brasil, como o Metamidofós, detectado em três alimentos vendidos na Ceasa pela reportagem do Grupo de Investigação (GDI) da RBS. Além das amostras coletadas na central com resíduo de agrotóxico não autorizado para a cultura, foi verificada a presença de cinco tipos de agroquímicos acima do limite máximo permitido no pimentão e no morango, o que indica abuso na aplicação.
PRODUTOR DE FORA DO ESTADO
O que disse Ailton Machado
“Vocês (a reportagem) fizeram uma coleta de pimentão na Ceasa nas bancas do varejo, certo? Naquelas bancas o fornecedor é o mesmo. Pegaram o mesmo pimentão. (…) São bancas do varejo abastecidas por um atacadista de fora do Estado. Evidente que isso não importa para a população, que está consumindo igual.”
O que ZH apurou
A afirmação contraria um princípio da própria Ceasa. Pelo regramento da companhia, o Galpão Não Permanente (GNP) é destinado à venda de hortifrutigranjeiros produzidos no RS. Os agricultores locais recebem espaço no pavilhão conhecido como Pedra para comercializar os seus produtos. As quatro amostras compradas pela reportagem são de bancas variadas, de diferentes pontos e de distintos permissionários da companhia.
ASSOCIAÇÃO COM CÂNCER
O que disse Ailton Machado
“Essa associação que se faz do consumo de hortifrutigranjeiros a câncer é um absurdo. Se isso acontecesse, a maioria das pessoas no mundo teria um câncer. O câncer é ocasionado por hereditariedade, por fumo, por alcoolismo.”
O que ZH apurou
A nota técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre o Acefato, agrotóxico detectado nas amostras de alface, pepino, pimentão e cenoura da Ceasa, aponta que o pesticida foi classificado como “possível carcinógeno humano” pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), órgão auxiliar do Ministério da Saúde, emitiu parecer sobre os agrotóxicos em que afirmou que, “dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos, podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”.
RESPEITO AO TAC
O que disse Ailton Machado
“No ano de 2015, a gente aplicou a nossa obrigação do TAC, que é o curso de boas práticas agrícolas. (…) O papel da Ceasa é conduzir a fiscalização com o nosso corpo técnico para fazer as coletas… A Ceasa cumpre aqui o que lhe foi determinado pelo TAC rigorosamente.”
O que ZH apurou
A partir de laudos do Laboratório Central do Estado (Lacen) , foi constatado que, em pelo menos seis ocasiões, a direção da Ceasa deveria ter punido permissionários flagrados com resíduos de Metamidofós, proibido no Brasil desde junho de 2012. O primeiro episódio ocorreu em julho de 2013 (laudo 8.747/13), quando o Metamidofós foi detectado no morango. Depois, houve três casos de resíduos do pesticida em amostras de pimentão, em outubro de 2013 (laudos 14.269/13, 13.829/13 e 14.267/13). Em 2015, duas análises no pepino detectaram a presença do resíduo, ainda que em volume não quantificado (laudos 7.822/2015 e 7.818/2015). Os documentos foram emitidos pelo Lacen em decorrência do TAC e concluíram que os alimentos eram impróprios para o consumo. Nos casos de descoberta de uso de agroquímico banido do país, o termo assinado com o Ministério Público determina que o produtor deve ser proibido de vender por um ano o alimento contaminado. A sanção não foi aplicada a nenhum dos produtores.

 

  • Projeto torna crime hediondo roubo e contrabando

Dois projetos que tramitam na Câmara Federal enrijecem o controle do uso e da venda de agrotóxicos no Brasil. As duas iniciativas são do deputado federal Jerônimo Goergen (PP-RS) e estão na fila para votação.

A de impacto mais amplo é o projeto de lei nº 2.079/2015, que torna crime hediondo furto, roubo, receptação e contrabando de agrotóxicos. Com isso, o condenado terá de cumprir 2/5 da pena, antes de progredir do regime fechado (presídio) para o semiaberto. Hoje, ele precisa cumprir apenas 1/6 da pena, antes de receber benefício de progressão de regime.

A proposta se encontra na última etapa legislativa na Câmara dos Deputados, pronta para votação, prevista para os próximos dias, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde tem parecer favorável para aprovação. Se acatada, segue para o Senado. Com base nas denúncias feitas por Zero Hora na série de reportagens Perigo no Prato, o deputado Goergen promete levar ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pedido para que a votação seja acelerada.

OUTRA INICIATIVA PREVÊ ANÁLISE QUÍMICA DE GRÃOS IMPORTADOS

Conforme levantamento de entidades do agronegócio, este ano foram contabilizados 15,2 mil recipientes de agrotóxicos roubados no país. Cada assalto resulta, em média, em prejuízo de R$ 793 mil para o distribuidor.

A outra proposta de Goergen, projeto de lei nº 3487/2012, torna obrigatória a análise de toxinas em grãos importados pelo Brasil. Um dos alvos é o trigo, cujas sementes costumam ser importadas de países que toleram agrotóxicos não permitidos em território brasileiro.

– Ou seja, uma contradição. Existe punição para o uso de determinados agrotóxicos na lavoura, mas o governo não faz nada em relação aos importados legalmente, que estão contaminados – pondera o deputado.

O projeto, que está por ser votado no plenário da Câmara, torna obrigatória a análise de resíduos químicos de agrotóxicos e de princípios ativos usados na industrialização desses produtos. A inspeção para certificar a ausência de substâncias prejudiciais à saúde deverá ser atestada por certificado ou laudo técnico.

 

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