Promotor responsável por investigações que revelaram grandes fraudes na indústria alimentícia do RS diz que quer ajudar a expandir a experiência para outros Estados
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O porto-alegrense Mauro até tentou se aperfeiçoar na produção de pautas, função que chegou a exercer por algum tempo, mas a vocação pelo Direito falou mais alto em determinado momento da vida. Advogou por um curto período e logo depois ingressou no Ministério Público.
Hoje promotor de Justiça reconhecido nacionalmente, tornou-se um homem importante no combate ao crime organizado, a traficantes, homicidas e estelionatários, e atualmente concentra esforços para investigar e denunciar fraudes no setor alimentício. É graças a ele e a parceiros do Ministério Público que a adulteração de alimentos – antes encarada praticamente como uma travessura, um estelionato sem maiores consequências para o consumidor – virou motivo de cadeia para fraudadores no Rio Grande do Sul.
Desde maio de 2013, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – Segurança Alimentar já realizou 14 operações denominadas Leite Compen$ado e outras quatro conhecidas como Queijo Compen$ado, desarticulando esquemas de adulteração do produto final repassado ao consumidor.
– A Leite Compensado vai ganhar o país – prevê Rockenbach, 53 anos.
Seu pai foi jornalista, radialista bastante conhecido, morto há pouco tempo. Quais lembranças o senhor tem dele?
O velho foi um ícone do radiojornalismo. Foi a primeira voz do rádio a falar em televisão no Estado. Fez a leitura do discurso do (Assis) Chateaubriand quando inaugurou a TV Piratini. Vivia dentro dos corredores e estúdios de rádio e televisão com ele. Meu pai chegou a incentivar que eu fosse trabalhar com rádio, por identificar em mim uma voz do meio. Mas eu tinha outra inclinação, até decorrente de uma escolha que ele fez de vida. Com 45 anos ele foi cursar Direito. Passei minha adolescência vendo-o nesse ambiente, discutindo, conversando com colegas. Foi isso que me levou para o Direito.
Chegou a exercer alguma função no jornalismo por causa do seu pai?
Foi muito interessante. Eu fazia a pauta da tarde da TV, assim como se cobria Grêmio e Inter na mesma tarde. Eu tinha de cobrir, às vezes, enchente e o Palácio Piratini uma hora depois. Então a gente ia de um extremo a outro.
Por que cursou Direito e ingressou no Ministério Público? Chegou a advogar?
Sim, advoguei. Fiz a carteira de estágio na época e tive escritório com alguns colegas. Atuava em uma área geral, cível, criminal, mais voltada para o crime, apesar de não gostar de advogar no crime. Já no meio da faculdade, optei pelo Ministério Público. Fiz quatro concursos só para o MP. Passei em dois. Em 1989, em Santa Catarina. Assumi e fiquei um ano lá em Criciúma. No ano seguinte, passei no concurso do Rio Grande do Sul e voltei. Assumi em 1991.
Sua passagem pela advocacia foi breve. Defender criminosos lhe era incômodo?
Havia um choque de princípios. Percebia que minha veia era mais para a sociedade e não para o indivíduo. Me causava desconforto ter de ficar inventando teses.
Essa relação com o jornalismo talvez explique sua conduta de convocar a imprensa para acompanhar operações. É postura incomum no Ministério Público, mais frequente em ações da Polícia Civil e, às vezes, da Polícia Federal. A presença da mídia não atrapalha as operações?
A motivação de chamar a imprensa é para mostrar a transparência do trabalho. Não temos nada a esconder. Nosso dever é informar a sociedade sobre aquilo que está acontecendo. Eventualmente pode acontecer, pontualmente, uma situação ou outra de vazamento de informações. Já aconteceu, mas isso não compromete o todo, de forma alguma. Um dos vazamentos ocorreu na Rádio Liberdade, de Lajeado, onde meu pai começou a carreira dele. Fiquei chateado por ter sido lá, por essa relação. Algumas pessoas têm a necessidade de aparecer primeiro. Nesse caso, tivemos de suspender a diligência. Estávamos com escuta e aguardamos uma nova manifestação do nosso alvo porque ele foi avisado pela mãe, que estava escutando a rádio, de que havia uma movimentação do Ministério Público, da polícia, em direção à indústria onde ele trabalhava.
O senhor atuava bastante em casos de grupos criminosos, homicidas, traficantes. De repente, houve essa guinada. Por que o senhor decidiu investir na fiscalização da segurança alimentar?
Não passei direto dessas outras investigações para os crimes alimentares. Houve um momento em que nos dedicamos muito na adulteração de combustíveis. O combate foi muito forte, a ponto de considerarmos que a adulteração é quase inexistente hoje no Estado. O Ministério Público gaúcho comprou um laboratório para fazer a análise de todos os combustíveis, um laboratório móvel. Então nossos colegas, especialmente o Dr. Alcindo (promotor Alcindo Bastos), viajavam pelo Interior fazendo análise nos postos. Depois, ainda me dediquei muito a concursos públicos. Já fizemos três operações nesse sentido. Em determinado momento, percebi que estávamos dividindo espaço com as polícias, com a Polícia Civil, com a Polícia Federal, com a Brigada Militar. Essa divisão de espaço acabava gerando choque entre as instituições, um constrangimento. Optei por investigar crimes nos quais as polícias têm dificuldades financeiras e estruturais. A polícia tem dificuldades em um crime que seja praticado em todo o território estadual. Há uma carência.
Qual a diferença de traficantes e assaltantes para esses cujos crimes impactam diretamente na saúde humana?
Todos eles visam uma vantagem, visam o lucro. Todos querem angariar alguma coisa. Seja na fraude de combustível, seja no estelionato, na corrupção ou na adulteração de alimentos. A diferença é que uns criminosos são mais qualificados do que outros. Na fraude dos alimentos, por exemplo, há crimes praticados por técnicos, químicos e veterinários.
O senhor considera que as operações Leite Compen$ado e Queijo Compen$ado são a Lava-Jato dos alimentos?
Não tenho essa pretensão. A Lava-Jato atingiu o meio político, que todos se preocupavam há bastante tempo. No caso da Leite Compen$ado, é uma investigação nova, um fato novo que apuramos. Até 2013, o Ministério da Agricultura punia esses crimes com sanção administrativa. Era rotineiro, na atuação de fiscalização, o fiscal identificar a fraude e instaurar procedimento administrativo, aplicar multa irrisória, que não tinha capacidade de inibir aquela conduta criminosa. Então, esse crime tinha uma rentabilidade muito grande. E a gente sabe que o criminoso faz uma equação: coloca os custos da ação, os custos operacionais, custos pessoais e decide se vale a pena ou não. Ele sabe o que está fazendo. Na adulteração do leite, o sujeito tem um silo que está deteriorando e sabe da inexistência de fiscalização. É aleatória, vai a cada seis meses fazer uma visita. E a legislação é branda. Se ele for flagrado e autuado, a pena é mínima. Então, ele se encoraja a adulterar aquele produto e recuperar o que estaria perdendo. Não há uma ação intimidatória, na prática.
A Leite Compen$ado vai passar as fronteiras do Rio Grande do Sul?
É uma experiência que pretendemos levar para outros Estados, certamente. A fraude no leite não é privilégio do Rio Grande do Sul, de forma alguma. Isso acontece em outras partes do país. Eu e o Dr. Alcindo já estivemos no Rio de Janeiro falando para fiscais federais para que reproduzam lá esse tipo de investigação. Santa Catarina, por exemplo, já fez duas operações. Em Minas Gerais já houve a Operação Ouro Branco em 2007, conduzida pela Polícia Federal. Houve fraude de adição de produtos no leite e havia participação de fiscais federais.
Primeiro, fraude no leite. Depois, no queijo. O Ministério Público também flagrou problemas na produção e conservação do palmito e água mineral contaminada. A cadeia alimentícia no Estado está comprometida?
Não dá para dizer que toda a cadeia alimentícia está comprometida. Podemos afirmar que existe aquela situação de oportunidade. O sujeito identifica e vai lucrar. No caso do leite, o crime está presente em todos os setores da cadeia produtiva. Desde o produtor rural até a indústria. E agora, na fase mais recente da Leite Compen$ado, chegamos a um instituto (Instituto Gaúcho do Leite, o IGL) que foi criado a partir das nossas operações para trabalhar, fomentar a qualidade e produtividade do setor. Mas o meio criminoso se imiscuiu no instituto. Começou a entrar no tecido do Estado, tanto que identificamos o secretário do IGL fraudando leite, fraudando queijo.
Vocês pensam em atuar no setor da carne?
Sou obrigado a lembrar de um colega aqui da Promotoria Especializada Criminal, no início da década passada, que deu origem à CPI da Carne. Foi um trabalho de oito meses de investigação de abigeato na fronteira do Estado. Só que o abigeato também é uma cultura criminosa. Há uma dificuldade grande em enfrentá-lo, por duas razões: primeiro, ele é pulverizado, se dá à noite, em lugares distantes, sem sinal de telefone, internet, de nada. Segundo, o abigeato é usado como desculpa por muito agropecuarista para sonegar imposto. A diferença entre os animais vivos e mortos é justificada pelo abigeato, o que muitas vezes não ocorre.
De onde surgem as denúncias que desencadeiam as operações?
Das mais variadas fontes. Hoje, na Leite Compen$ado, nós recebemos do consumidor, das promotorias, das indústrias. E nós protegemos a identidade dos nossos informantes. As denúncias chegam por e-mail, por telefone, para as promotorias locais, pelas redes sociais.
A política também faz parte de toda essa fraude nos alimentos?
Não posso dizer que faça parte. Mas a política, em algum momento, tem interesse em alguma situação. O IGL, por exemplo, é um instituto que administra fundo com valores substanciais. Então, é claro que há interesse político numa instituição que pode reverter em votos. É uma clara fonte de captação de votos.
Após uma determinada fase da Leite Compen$ado, o senhor chegou a se emocionar em uma entrevista coletiva quando ficou sabendo da prisão do superintendente do Ministério da Agricultura no Estado, Francisco Signor, em operação da Polícia Federal.
O Francisco Signor estava na superintendência do Mapa no Estado a serviço de um esquema político. Ele fazia captação de recursos, reduzia multas e criava obstáculos para as ações de fiscalização para não prejudicar as indústrias, as empresas, os grandes empresários. Ele colocou muitos entraves ao nosso trabalho. Aliado a isso, havia uma situação de corrupção em uma determinada região do Estado. Todas as combinações, ajustes, tratativas, chegavam ao conhecimento dos nossos alvos. Em geral, é um sistema de loteamento de cargos, que compromete muito o país. As pessoas são colocadas em postos-chave para dar algum retorno específico.
O cidadão comum tem a impressão de que a corrupção está disseminada, enraizada. Está nos alimentos, nas obras, nos serviços.
É um fenômeno mundial, decorrência do ser humano. A corrupção, a venda de facilidades, enfim… O que se vê no Brasil e que nos espanta são essas denúncias diárias de corrupção. Só que há um outro lado: hoje nós vemos isso acontecer. A gente vê as investigações avançando, chegando ao final, dando resultado. O MP está conseguindo responsabilizar pessoas que desviam dinheiro público.
O Brasil pode deixar de ser o país da impunidade?
Não digo que deixaremos de ser o país da impunidade, mas isso vai ficar cada vez mais difícil. O próprio Supremo (Supremo Tribunal Federal, o STF) já mudou de postura. Até pouco tempo atrás, o STF não condenava políticos. Hoje prende políticos, prende senadores, afasta presidentes.
Existe corrupção no Ministério Público?
Não identificamos até o momento. Há um ou outro fato investigado, isolado, mas a corrupção no MP é quase inexistente. O promotor de Justiça se forma por um ideal. É como um sacerdócio. Não vem ao serviço por poder, não vem por dinheiro, vem por um ideal de trabalhar pela sociedade. Dificilmente ele vai buscar vantagem no exercício da função.
Delegados têm pressionado para eles próprios firmarem acordos de delação premiada e pedir direto mandados de prisão. O que o senhor acha disso?
São possibilidades que a polícia já perdeu anteriormente. Até 1988, antes da Constituição, o delegado tinha o poder de fazer busca e apreensão, de efetuar prisões. A polícia perdeu isso pelos abusos cometidos ao longo do tempo. Agora vejo como um retrocesso se voltar a ter essas possibilidades. O destinatário das provas é o Ministério Público, nós é que somos os titulares da ação penal. Esse critério não é do delegado de polícia. O delegado tem de identificar a situação de fato, apontar os autores, juntar as materialidades e entregar ao MP.
A propósito, como está a relação do MP gaúcho com as polícias?
É uma relação excelente. Não estamos em zona de atrito. Procuramos fazer investigações de outros crimes. Trabalhamos com policiais civis e militares na maior harmonia. Também procuramos não investigar policiais. As instituições têm suas corregedorias para isso. Quando identificamos um caso de policial suspeito, encaminhamos para as corregedorias.
E a crise financeira do Estado? O que o senhor pensa a respeito disso?
Chegamos a um ponto que era esperado. As diversas administrações só se preocuparam em gastar e não em fechar as torneiras. Não reestruturaram órgãos, não fizeram as readequações necessárias. Todos os administradores assumem prometendo milagres e, quando deparam com a realidade, não podem fazer nada, mas devem explicações ao povo.
Se o senhor pudesse mandar um recado para criminosos, qual seria?
É aquilo que venho dizendo desde o início. Aqueles que estiverem adulterando alimentos, leite, queijo, derivados, que esperem a nossa visita. Chegaremos. Criminosos, esperem a nossa visita. Já fizemos 14 operações Leite Compen$ado, quatro da Queijo Compen$ado, e as pessoas continuam fraudando. Que elas saibam que vamos chegar. É só uma questão de tempo.
Por que a repetição das operações?
Por que não é um crime organizado. É uma cultura criminosa. Uma cultura criminosa não se combate somente com repressão. Duas outras medidas devem andar no mesmo passo: uma fiscalização mais rigorosa (faltam fiscais em número suficiente) e uma legislação adequada. E nós não temos isso. Hoje o Estado pensa até em terceirizar a fiscalização, a inspeção animal, o que é um equívoco muito grande. As penas deveriam ser agravadas, deveriam ser intimidatórias. As penas teriam de ser assustadoras.