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Cavalos que puxam peso excessivo de charretes. Cães magros revirando contêineres de lixo à procura de comida. Animais estressados ou tomados de doenças, em ambientes impróprios. A cena é comum em cidades com grande população de animais de rua, como é o caso de Pelotas. Lançada no início deste mês, uma consulta pública pretende definir o que são maus-tratos a animais e o papel de profissionais da área frente ao tema. A consulta está sendo realizada pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), órgão responsável por fiscalizar, disciplinar e regulamentar o exercício da Medicina Veterinária e Zootecnia no país.
A nova resolução entende por crueldade “qualquer ato que esteja associado a fazer ou fomentar o mal, ameaçar, atormentar ou prejudicar um animal”. Hoje não existe uma lei que defina o que são maus-tratos. Professora do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Marta Fehlberg criou e ministra a disciplina de Bem-estar Animal há dez anos. Para a especialista, o bem-estar deve ser levado em consideração para dar maior qualidade de vida aos bichos. “Muitas pessoas pensam que maus-tratos é gritar, agredir o animal, mas, por exemplo, deixar ele preso numa gaiola pode ser muito mais prejudicial”, diz. Entre a categoria dos veterinários, existem duas linhas que tratam da questão. De um lado, profissionais que adotam a do “bem-estar animal”, preocupados com a qualidade de vida na criação e no manuseio, inclusive em grandes produções. Já a linha de “libertação”, explica a professora, é mais incisiva e contrária às grandes produções e ao consumo da carne. Marta explica que todo animal vertebrado é um ser senciente, ou seja, tem consciência, emoções e sente dor.
Dentro do atual contexto de produção de carne e consumo, muito do que é ensinado como boas práticas não é levado em consideração frente à necessidade de produtividade. A nova resolução prevê cuidados nutricionais, ambientais, comportamentais e com a saúde. Isso pode variar de acordo com cada espécie e cada situação que se encontra. A profissional vê como positiva a regulação e consulta do CFMV. “É um passo além para melhorar a qualidade de vida”, conclui.
Já o diretor do Hospital de Clínicas Veterinárias da UFPel, professor Eduardo Nogueira, diz ter receio dessas novas resoluções. Para o diretor, o CFMV deveria priorizar maior diálogo com a categoria antes de lançar uma consulta pública. A época em que foi lançada também não é adequada. “Esta época do ano, tanto as universidades como os profissionais, a grande maioria está em férias.” O Hospital da UFPel funciona como escola para novos veterinários. Noronha garante que o órgão se preocupa com as boas práticas no manuseio com animais. “A gente instrui, faz os estudantes enxergarem, mas acho que esta resolução vai servir a poucos”, opina o diretor.
Levantamento realizado pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul indica que existem, em Pelotas, cerca de 20 a 30 canis. Entretanto, o único legalizado conforme as normas instituídas é o Canil da Prefeitura, que conta com médico veterinário como responsável técnico. De acordo com o Mateus Lange, coordenador técnico da fiscalização e orientação profissional do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV-RS), não é possível fiscalizar os canis de pessoas físicas. “Não temos como autuar canis particulares nem como fiscalizar se há ou não boa conduta nestes locais”, admite.
As sugestões sobre o tema podem ser encaminhadas com o assunto “Maus tratos e crueldade”, até o dia 3 de fevereiro de 2017, pelo e-mail consultapublica@cfmv.gov.br.
Dois casos sem final feliz
Órgão da prefeitura, a Hospedaria de Grande Animais atende chamados de populares que denunciam animais abandonados. Em 2016, dois episódios dramáticos foram relatados pela unidade.
No dia 3 de março a equipe recolheu um cavalo no Sítio Floresta, em condições deploráveis, descartado pelo antigo dono. O animal idoso foi tratado com injeção de cálcio e anabolizante – para estimular seu metabolismo -, mas quatro dias depois foi encontrado caído. Levado ao Hospital Veterinário da UFPel, concluiu-se que era melhor sacrificá-lo.
No segundo caso, em 12 de março, a Hospedaria recolheu uma égua no Corredor do Guido, na Sanga Funda. O exame clínico apontou grande infecção e a égua foi tratada com medicamentos, polivitamínico com sais minerais, além de água e ração, mas não resistiu à intensidade das lesões e morreu.
As denúncias de maus-tratos com cavalos podem ser feitas ao telefone da Hospedaria – 3271-9244 -, que age em conjunto com a 3ª Companhia Ambiental da Brigada Militar (Patram).
Doações
A Hospedaria realiza ainda doações de animais que sofreram maus-tratos e foram resgatados. No local, cavalos recebem tratamento por 30 dias, segundo o Código de Posturas do Município. Os proprietários têm o direito de buscá-los após esse período, caso paguem multa.
Quando isso não ocorre, eles são oferecidos à adoção. O projeto já realizou seis etapas de doações, totalizando 59 animais. A última foi realizada segunda-feira, quando nove cavalos ganharam novos lares.
Indicadores de Bem-estar animal
Nutricionais
-Quantidade, qualidade, limpeza e disponibilidade de bebedouros em relação
ao número de animais
-Quantidade, limpeza, disponibilidade de comedouros por quantidade e qualidade
dos alimentos
-Boas práticas de estoque e prazo de validade de alimentos e ingredientes em estoque
-Idade de desmame quando pertinente
Ambientais
-Higiene do animal e do ambiente
-Qualidade da cama, do piso e tipos de substrato disponíveis
-Animais ofegantes, com sinais comportamentais de frio
-Densidade do alojamento
-Características e número de recintos ou instalações que os animais podem utilizar
-Tempo de permanência nos diferentes ambientes disponíveis
-Opção de acesso ao ar livre
-Abrigo de chuva, vento e sol com possiblidade permanente de acesso
Saúde
-Não ter firmeza nos pés ou mancar
-Lesão na superfície corporal, cicatrizes, fraturas, contusões e hematomas
-Evidências de artrites e artroses, inchaço nas articulações, dor, análise de expressão facial, postura corporal em estação e em movimento
-Doenças infecciosas e não infecciosas, endo e ectoparasitoses
-Ausência de cuidados preventivos adequados, como vacinação, vermifugação
-Ausência de cuidados curativos adequados
-Mutilações e mortalidade
-Intervenções na integridade física do animal com justificativa frágil, em especial não motivada pelo interesse do animal
Comportamentais
-Avaliação qualitativa do comportamento
-Presença de estereotipias ou outros comportamentos anormais
-Qualidade e quantidade de vocalização
-Privações de comportamento social natural da espécie
-Idade de separação da mãe
-Estrutura física e social quando alojados em grupo
-Restrição aos movimentos naturais para se deitar, levantar, espreguiçar e outros comportamentos de cuidados corporais
-Evidências de inadequações no manejo de animais
-Evidências de técnicas inadequadas de treinamento de animais, em especial negligência quanto ao uso do método de menor aversividade
-Sinais de canibalismo, arrancamento de penas
-Automutilação
-Variedade de itens, técnicas e modos de apresentação de enriquecimento ambiental, frequência de oferta e monitoramento dos efeitos do enriquecimento ambiental
-Possibilidades para os animais exercerem controle de seu ambiente
-Atitude dos animais em geral e anormalidades do estado de alerta
-Atitude dos animais aos seres humanos, em especial seus tratadores, observando a distribuição do centro de gravidade corporal, posição de cauda e orelhas, piloereção (pelos em pé), entre outros, conforme a espécie em questão.